RENATO NUNES - Durante um período, mais ou menos regular, serão apresentados aqui, em www.vilafrancadabeira.net, “escritos” do Amigo Vilafranquense - Renato Nunes.
Esta primeira
divulgação, intitulada “ I Guerra Mundial: a indústria da
morte”, retrata alguns episódios com algumas pessoas de Vila
Franca. Este tema, também foi dissertado, nas últimas "Férias com Cultura", realizadas em Vila Franca, em Agosto último. Se estiver interessado, em comentar os textos, poderá
fazê-lo, em “Comentários”.
Há
100 anos atrás, o mundo estava em guerra. O primeiro conflito à
escala planetária (1914-1918) constitui um dos marcos mais
importantes da História Contemporânea, pois o seu desenrolar
originou um conjunto de profundas transformações. A partir desse
momento, o mundo nunca mais seria igual: nascia uma nova era, que
colocava fim à “idade dourada da segurança” (Stefan Zweig);
nascia a indústria da morte, que se aperfeiçoa cirurgicamente até
aos dias de hoje…
A
assinatura do armistício, a 11 de Novembro de 1918, em Rethondes
(França), deixava para trás cerca de 10 milhões de cadáveres,
mais de 25 milhões de mutilados, uma Europa praticamente destruída
e progressivamente dominada pela inflação galopante/desemprego,
impérios desfragmentados e, por exemplo, uma nova configuração
geo-política internacional, com os EUA a assumirem o papel de
principal potência mundial e a Rússia, já sob o domínio de Lenine
(após a revolução socialista soviética de 1917), a atrair a
curiosidade (e o receio…) do mundo. Alguns historiadores consideram
mesmo que o início do século XX pode ser associado, numa
perspectiva mais abrangente, à I Guerra e, segundo creio, o mundo
dos nossos dias nasceu naquela época, sendo que pouco do que
aconteceu a seguir (desde logo, a ascensão dos regimes totalitários
e a II Guerra Mundial) pode ser compreendido sem a sua existência.
Ora,
conversando recentemente com algumas pessoas mais idosas da minha
aldeia, fiquei surpreendido com as prolíficas memórias familiares
que ainda existem sobre este conflito, à primeira vista tão
longínquo no tempo: afinal, à escala humana, um século parece por
vezes uma eternidade! Pena é que esta “consciência histórica”
não possa estender-se aos mais jovens…
A
I Guerra Mundial intersectou, de um modo bastante vincado, a História
das famílias com a História da própria Humanidade. Daí que nas
gavetas de muitos portugueses anónimos continuem escondidos vários
tesouros. Em certo sentido, podemos dizer que esses esqueletos
escondidos são cicatrizes que nunca se fecharam; portas das quais
nunca se regressa incólume…
Ao
procurar identificar o nome de um combatente da aldeia onde cresci,
morto na frente europeia, em 1918, fui surpreendido com a existência
de, pelo menos, mais oito expedicionários, onde se contava uma outra
vítima mortal da guerra. Uma fugaz passagem pelo Centro Social e
Paroquial (Lar de Idosos) mais próximo ajudou-me rapidamente a
depreender que um eventual alargamento do estudo desta temática a
todo o concelho (Oliveira do Hospital) faria, por certo, disparar os
números e desenterrar outros tesouros.
Por
agora, entre os cofres abertos, não posso deixar de partilhar aqui
alguns dos dados que tive oportunidade de compulsar numa caderneta
militar de um conterrâneo meu, documento esse que apresenta um
invulgar estado de conservação, pese embora o facto de ter mais de
um século! As suas capas pretas impecavelmente alinhadas, sem
qualquer vinco no tecido, cumprem rigorosamente uma das indicações
constantes logo na página inicial: “Não é permitido dobrar a
caderneta”.
A
cédula militar em causa pertenceu a Alípio Esteves Borges
(“Monteiro”), soldado n.º 2909, residente em Vila Franca (à
época, do Ervedal), nascido em Novembro de 1893. O recrutado
assentou praça quando tinha 19 anos (30 de Julho de 1913), para
servir até aos 45 anos de idade, a cargo do distrito de Coimbra, no
regimento de Infantaria.
Aquando
da recruta, o jovem agricultor saberia ler, escrever e contar,
parecendo poder depreender-se da sua cédula militar que teria
concluído a 3.ª classe. Retenha-se que, em 1910, a taxa nacional de
analfabetismo rondaria os 75%, flagelo que haveria, em traços
gerais, de perpetuar-se pelo tempo fora, pese embora o esforço feito
pela jovem República no sentido de combater este problema
(preocupação, de resto, fulcral para compreender a inauguração da
Escola Primária de Vila Franca, ainda no antigo largo do Cruzeiro,
por volta de 1911, no lugar anteriormente ocupado pela Capela de
Santa Margarida – cf.
“Monografia” escrita por José Marques
Lopes: http://vilafrancadabeiranoticias.blogspot.pt/).
Finalizada
a instrução de recruta, em 30 de Abril de 1914, Alípio Borges foi
integrado no Corpo Expedicionário Português (CEP) e embarcou para
França, em 23 de Fevereiro de 1917, de onde apenas regressou, a
título definitivo, em 23 de Julho de 1918. Mais tarde, acabaria por
beneficiar de uma parca pensão e receberia uma medalha comemorativa
dos combates travados pelo exército português, com a legenda
“França 1917-1918”.
Esteve,
portanto, na frente de batalha europeia cerca de um ano e cinco
meses, o que, de per si, nos permite imaginar algumas das
dificuldades que, por certo, terá experimentado, nomeadamente
durante a desgastante fase das trincheiras (v.g., no Inverno de
1917/1918, as temperaturas desceram aos 30 graus negativos, que
congelavam a água existente nos motores; segundo Isabel Pestana
Marques, os expedicionários portugueses chegaram a estar mais de um
ano na linha da frente, ao contrário dos ingleses que eram rendidos
trimestralmente)… Memórias que, por certo, terão acompanhado
Alípio Borges até à morte, em 1972, e que, talvez, tenham sido
reavivadas quando, no dia 1 de Janeiro de 1961, com 67 anos, voltou a
ser obrigado a “apresentar-se” em Oliveira do Hospital, por certo
no contexto do início da Guerra do Ultramar.
Importará
dizer que o primeiro contingente de tropas do CEP destinado à guerra
na Europa embarcou em Lisboa, no final de Janeiro de 1917 (para
África, os primeiros portugueses partiram logo em 1914). Após a
instrução prévia, os expedicionários eram concentrados em Tancos
(Vila Nova da Barquinha, Santarém), onde recebiam um treino mais
intensivo, mas, sabemos hoje, profundamente desajustado à nova
realidade bélica mundial, dada a proeminência da guerra química
(veja-se o caso do gás mostarda), do poder da artilharia (a
metralhadora pesada inglesa Vickers de 7,7 mm poderia disparar
cerca de 600 projécteis por minuto), dos tanques, dos lança-chamas,
do impacto da aviação militar e dos submarinos, entre outros
recursos tecnológicos dramaticamente mortíferos e causadores de
doenças até então desconhecidas, nomeadamente do ponto de vista
mental (neurose de guerra).
Aplicado
o propalado “milagre de Tancos”, os expedicionários rumavam de
comboio para Santa Apolónia, daí marchavam para Alcântara e, de
barco, seguiam para o porto de Brest (França) e, finalmente,
para a linha da frente (no total, seriam 55 mil portugueses a chegar
à Flandres). Esse trajecto final até ao Norte da França seria, de
resto, marcado pelas constantes paragens em várias estações, como
nos recorda Isabel Pestana Marques, na sua incontornável obra Das
Trincheiras, com saudade, na qual a historiadora partilha as
conclusões extraídas ao longo de 18 anos de investigação.
Escreveu
Jay Winter que cerca de metade dos homens que morreram na I Guerra
não têm túmulo conhecido. Numa iniciativa a todos os títulos
meritória, o jornal Público tem vindo a editar diariamente
uma série de suplementos sobre o conflito, procurando, assim,
reerguer do esquecimento os combatentes nacionais, ainda hoje,
repita-se, muitas vezes sepultados no vazio do anonimato, como
acontece em África (Público, I Grande Guerra, n.º 4, 31 de
Julho de 2014).
No
cemitério da minha aldeia nativa, o tempo tem-se encarregado de
fazer desaparecer das lápides os nomes destes meus conterrâneos
“serranos” que, no início do século passado, foram mobilizados
pela jovem I República para combaterem em terras estrangeiras, por
uma causa (mormente, no que se refere à Europa – principal palco
do conflito) que pouco ou nada lhes diria, além da iminente certeza
de uma morte anunciada pelos obuses e, tantas vezes, vislumbrada nos
cadáveres, com os quais coabitavam nas trincheiras, já para não
falar nas pulgas, piolhos, larvas, ratos, lama… Homens que, muitas
vezes, mal conheciam os limites do concelho onde haviam nascido e que
percepcionavam Lisboa como o outro lado do mundo…
A
I Guerra Mundial teve um impacto decisivo do ponto de vista político
(contribuindo para o agudizar da crise da I República), mas os seus
efeitos fizeram-se sentir igualmente no quotidiano das populações,
nesse Portugal profundo, vincadamente rural, analfabeto, periférico
e ainda bastante marcado pela matriz católica, pese embora o esforço
de laicização empreendido pela jovem República, vertido na
polémica Lei da separação das Igrejas do Estado,
promulgada, em 1911, pelo Governo Provisório saído da revolução
de 5 de Outubro de 1910.
1917
e os anos seguintes ficaram marcados por sucessivos relatos de
“aparições” que eclodiram por todo o país, sendo o mais
paradigmático o fenómeno das alegadas “aparições” da Virgem
Maria aos três pastorinhos (Francisco, Jacinta e Marta), na Cova da
Iria (Fátima). Sintomaticamente, na memória de muitos habitantes de
Vila Franca da Beira ainda paira a imagem das mães que rumavam
diariamente ao santuário da Santa Margarida, para pedir o regresso,
breve e saudável, dos seus filhos. Parece, pois, verificar-se um
revivalismo do culto religioso, nesta época de fome, guerra e peste
(Geoffrey Blainey refere mesmo que, durante a guerra, por cada
soldado morto por balas, granadas ou explosivos um morria de doença
e, além disso, segundo aquele historiador australiano, a gripe
“espanhola”, surgida na ressaca do conflito, matou ainda mais
pessoas do que a I Guerra).
Procurando
não cair na tendência de fazer hagiografia, importa hoje, cada vez
mais, recordar estes homens esquecidos na voragem dos tempos. De Vila
Franca da Beira, eis a lista, naturalmente provisória (com as
naturais imperfeições daí decorrentes), daqueles que terão
participado no primeiro conflito à escala planetária (um trabalho
apenas possível em grande parte graças à preciosa memória das
gentes que me viram crescer): Celestino Pais, Alípio Esteves Borges,
Aires Lopes Figueiredo, Eduardo Borges de Campos, Gabriel Tavares
Gonçalves, Sebastião Esteves Simões, Carlos Fernandes Lopes,
Sebastião e Abel, sendo que os dois últimos (cujos apelidos terão
ainda de ser confirmados) estão incluídos entre os cerca de 8 mil
portugueses que perderam a vida na Flandres e em África.
Segundo
creio, valeria a pena alargar a lista a todo o concelho, pelo que
deixo aqui o repto ao leitor, que ainda conserva algum tipo de
memória sobre este assunto, para que a inscreva no espaço
consagrado aos comentários, que, felizmente, as novas tecnologias
nos permitem utilizar e que poderiam trazer inequívocas vantagens
para todos, caso fossem utilizadas de um modo mais eficiente e,
digamos, menos maledicente...
Na
sua obra Uma breve história do século XX, Geoffrey Blainey
conclui que, Albert Einstein, inadvertidamente, “ao pregar uma
versão de pacifismo numa altura inapropriada”, contribuiu, dada a
sua influência, “para enfraquecer alguns dos entraves colocados à
subida de Hitler ao poder”. Nestes novos tempos, em que a guerra
parece ter entrado numa nova era (desde logo, com os drones e
os conflitos localizados caracterizados por um poder de destruição
total), importa não descurar a vigília. Afinal, uma nova guerra
mundial poderá estar mesmo ao dobrar da esquina e a verdade é que
ninguém poderá partir para um novo conflito com as ilusões que
muitos experimentaram, aquando da declaração de guerra da
Inglaterra e França à Alemanha e ao império Austro-Húngaro
(Agosto de 1914), pois a indústria da morte tem as chamas mais vivas
do que nunca…
Conhecer
a guerra através das pessoas de carne e osso que a viveram e que,
afinal, são os nossos familiares directos ajudar-nos-á, por certo,
a perceber que, por trás da banalidade com que assistimos, durante o
almoço, a uma guerra do outro lado do mundo, existem dimensões da
vida que nenhuma palavra poderá descrever. Afinal, o sofrimento e o
drama nunca têm limites. Quando os estudamos é que compreendemos
que nenhuma guerra acaba com as guerras. Quando os vivemos é que
realmente sentimos…
Termino
com Marc Ferro, que, no livro A grande guerra 1914-1918, cita
as dramáticas palavras escritas pelo combatente Raymond Naegelen, a
propósito da vida infernal nas trincheiras. No ano em que se
completam 100 anos após o início da I Guerra e parece proliferar a
tendência para derrubar ainda mais as pontes entre as Nações
(crescente isolamento proteccionista…), vale a pena pensar nelas:
“Sobre
toda a frente do cabeço de Souain, desde Setembro de 1915, os
soldados de infantaria ceifados pelas metralhadoras jazem estendidos
de barriga para baixo, alinhados como num exercício.
A
chuva cai sobre eles, inexorável, e as balas partem os seus ossos
embranquecidos.
Uma
noite, Jacques, durante uma patrulha, viu sob os seus capotes
descoloridos ratazanas a fugir, ratazanas enormes, engordadas a carne
humana. Com o coração a bater, ele rastejava em direcção a um
morto. O capacete tinha caído. O homem apresentava a cabeça
contorcida, vazia de carne: o crânio à vista, as órbitas vazias,
os olhos comidos. A dentadura tinha deslizado sobre a camisa podre e
da boca escancarada saltou um bicho imundo”…
Renato
Nunes (renato80rd8918@gmail.com)