RENATO NUNES - Durante um período, mais ou menos regular, serão apresentados aqui, em www.vilafrancadabeira.net, “escritos” do Amigo Vilafranquense - Renato Nunes.
Entre a História e a vida
Historiadores
e filósofos clássicos como Heródoto, Tucídides ou Cícero
acreditaram que “a História é a mestra da vida”. Alguns
autores mais recentes, no entanto, têm vindo a sustentar que a
grande mestra da História (e da Humanidade) é a vida: enquanto
esta nos grava na pele as duras aprendizagens adquiridas à custa
dos nossos próprios erros, a primeira limita-se, em traços
sumários, a mostrar-nos à distância alguns percursos trilhados
pelos nossos antepassados. Trata-se de uma distinção que, embora
simplista, talvez possa ajudar-nos a compreender a crónica
dificuldade que sentimos em aprender com os erros dos outros…
Vem este
arrazoado a propósito de uma reflexão que já algum tempo venho
amadurecendo acerca das relações do Homem com a História, em
particular nestes tempos tão estranhos que continuamos a viver.
Estar atento aos sinais dos dias deveria ser uma tarefa de todos
os cidadãos e, em particular, daqueles que consagram a vida ao
estudo desta “narrativa científica”. Também por isso, não
consigo aceitar (embora me pareça fácil explicar) o “enterrar
da cabeça na areia” que para aí vai grassando, mesmo entre
pessoas com responsabilidades histórico-culturais evidentes…
Por isso,
no início deste terceiro parágrafo lanço um desafio ao leitor:
perca algum do seu tempo a observar as emissões do “Canal
História”. Aí, poderá deparar-se com várias “preciosidades
esotéricas”, que podem passar pela procura de seres
extra-terrestres nas mais surpreendentes construções feitas
pelo Homem, no âmbito das várias civilizações, ou até mesmo,
só para dar outros exemplos bizarros, pela busca de vampiros,
monstros lendários ou deuses que se fizeram Homens… Podia,
afinal, falar de um “Canal História” que, de um modo regular,
parece querer falar de tudo, menos de História. Naturalmente que,
se um canal que deveria ser de referência é assim, nem vale a
pena explorar o que acontece no caso dos generalistas… big
brother’s
(ressalve-se aqui, apesar de tudo, o meritório esforço da
RTP2 do ponto de vista cultural, pese embora a espada de Dâmocles
– leia-se, privatização – que paira sobre a sua cabeça…).
Esta é, no
entanto – como outros articulistas já denunciaram –, a ponta
do icebergue de uma tendência mais vasta, que se reflecte, por
exemplo, no modo como a História aparece representada nos
escaparates das grandes superfícies comerciais, com títulos cada
vez mais sensacionalistas e graficamente adornados, mas cujo
conteúdo está, afinal, para a História como um camelo para o
rio Mondego… Depois, quanto aos estudos sérios que ainda vão
existindo (sim, porque neste país ainda se produz alguma
investigação séria e rigorosa), quando conseguem ser editados,
raramente chegam ao grande público por mais de uns fugazes
instantes, logo desaparecendo (inexplicavelmente?) dos
expositores.
Serão estas
grandes transformações inconscientemente fabricadas pelos
arautos do neo-liberalismo reinante neste novo século, quais
usurários que há muito venderam a alma ao Diabo, em nome do seu
único deus, o dinheiro? Tratar-se-á apenas de ignorância ou as
razões serão mais obscuras? Existirá uma estratégia deliberada
de reconverter os cidadãos em súbditos, o pensamento em
obediência? Estaremos, afinal, a regressar paulatinamente,
sub-repticiamente, a um Estado totalitário, que se intromete nos
mais variados domínios da existência do indivíduo, regulando e
vigiando obsessivamente tudo o que somos, passando até mesmo pelo
número de animais que acolhemos dentro das casas onde vivemos?
Aproveitar-se-ão os líderes do facto de as multidões preferirem
ser conduzidas, em detrimento de tomar as rédeas do futuro nas
próprias mãos? E poderão, efectivamente, tomá-las? O leitor
saberá encontrar a sua resposta. Mas, por favor, reflicta. E ouse
discordar das minhas respostas.
Respostas que,
afinal, são cada vez mais difíceis de encontrar, sobretudo para
aqueles que se sacrificaram ao longo de uma vida inteira ou para
os jovens que desperdiçaram décadas a concluírem percursos
académicos, muitas vezes com distinção, e depois são
convidados a emigrar para o resto dos seus dias. Respostas que, de
resto, não estão ao alcance dos comuns mortais e cujo sentido,
por mais que os nossos manhosos líderes nos procurem inculcar,
deixam sempre qualquer ser pensante com a pulga atrás da orelha.
Afinal, como recentemente me escrevia um amigo, este país já não
é para jovens, nem para idosos e, naturalmente, ainda menos para
crianças. Este país é para as pedras e, claro, para os
arrivistas, os burocratas mangas-de-alpaca, os corruptos, os
farsantes, tantos engenheiros ou doutores “à la burla”, que
depois até lançam livros onde se apresentam como vítimas de um
sistema que ainda há bem pouco tempo ajudaram habilmente a
forjar…
Atravessamos
um período de indefinição, laxismo, niilismo, anomia e,
sobretudo, de total impunidade em relação aos protegidos dos
vários reis que para aí existem. Efectivamente, pensando bem,
Portugal abandonou a Monarquia em 1910, mas nunca deixou de ser um
conjunto de pequenos reinos, governados por vários caciques, cuja
utilidade é tantas vezes justificada com o pretexto de um carimbo
ou uma simples rubrica. Olhamos à nossa volta e vemos polícias
condenados à prisão por terem colocado a vida em risco,
perseguindo criminosos; pais com medo de imporem regras aos
filhos, pela pressão social de algumas correntes
psico-pedagógicas que transformam as crianças em deuses que não
podem ouvir um não ou sentir o traumatismo da frustração e
muito menos de um berro; professores ameaçados, agredidos,
publicamente humilhados e, agora, forçados a fazer provas cujo
principal objectivo, além de representar um belo encaixe
financeiro para os cofres do Estado, passa por escamotear os
dramáticos números do desemprego. Afinal, deixarão de existir
docentes desempregados, cinicamente reconvertidos em candidatos a
professores que não conseguiram obter aprovação na tal prova
generalista já do dia 18 de Dezembro, onde serão testadas as
competências esotéricas que para aí grassam… A verdade é que
a qualidade do sistema não constitui o grande objectivo deste
tipo de medidas com carácter eliminatório que, de resto, me
fazem lembrar um pouco a trágica anedota do paciente que se
dirige repetidamente ao médico, queixando-se de dores no peito e
o clínico limita-se a mandar-lhe repetir exames atrás de exames,
até que o desgraçado lá acaba por morrer e, desse modo,
contribui para a redução estatística do número de doentes. Não
é, afinal, o que tem sucedido em Portugal ao longo dos últimos
anos com esta obsessiva ideia de que tudo se resolve com mais
exames, em detrimento de atacar as verdadeiras causas? A este
ritmo, não tardará que deixem de existir desempregados, pobres,
deficientes ou quaisquer outro tipo de calamidades e então o
reino dos céus terá, finalmente, chegado a este cantinho do
Mundo… Hoje, no meio de tanta miséria e de tanto cinismo, os
acenos que o poder nos faz são cada vez mais apetecíveis.
Depois, resistir-lhes implica uma integridade, que, reconheço,
nem sempre se coaduna com a necessidade de sobrevivência.
As linhas
traçadas para o futuro deste país, nomeadamente ao nível da
Educação, são simplesmente desastrosas. Veja-se, por exemplo, a
preconizada privatização das Escolas (ninguém se iluda: é o
que está realmente a acontecer), que significará “apenas” a
destruição de um dos mais poderosos meios de mobilidade social
ascendente construído neste país no pós-25 de Abril e que
permitiu a vários jovens (entre os quais me incluo) continuar a
estudar e ensaiar construir um futuro diferente das raízes onde
nasceu. Com todas estas medidas, no mundo dos privados, as elites
poderão continuar a perpetuar-se (dinheiro gera dinheiro, poder
gera poder) e os desgraçados do berço poderão igualmente
perpetuar-se… na miséria. Estamos, afinal, perante um profundo
retrocesso civilizacional.
Os arautos que
nos desgovernam parecem efectivamente acreditar no efeito Mateus:
“Porque ao que tem, dar-se-á e terá em abundância; mas ao que
não tem, ser-lhe-á tirado até mesmo o que tem”. Será
que é apenas porque nunca conheceram o amargo de não ter? A
verdade é que – perdoem-me o desabafo – ninguém deveria
governar os outros sem conhecer o sabor da fome, sem sentir na
pele a verdadeira dimensão da realidade.
Neste último
parágrafo, debruçado entre a vida e a História, opto pelas
pontes que unam as duas construtoras da memória e,
consequentemente, de tudo o que somos. Recordando o meu próprio
percurso pessoal e daqueles que me são mais próximos, regresso à
História-ciência e História-docência a que um dia pensei,
ingenuamente, poder consagrar a vida, em regime de exclusividade.
Regresso a todos os gigantes que continuam a transportar-nos aos
ombros. Regresso a esses gigantes, a tantos heróis do silêncio
do anonimato, que merecem, pelo menos, a nossa indignação. E
deles recupero uma lição que a História parece querer gritar-me
– se a indiferença vencer, o século XXI não será muito
diferente do século que o antecedeu: 1914-1918 – I Guerra
Mundial; 1939-1945 – II Guerra Mundial, Holocausto… Será
mesmo necessário continuar a escrever, sabendo que apenas este
último conflito terá provocado mais de 50 milhões de mortos e a
banalização do genocídio? Até quando a História e a vida
caminharão de costas voltadas dentro de cada um de nós?
Renato
Nunes