8 de dezembro de 2010

Desenhar a consciência e salvar-se…

Texto de ficção  - Enviado por Renato Nunes -

Desenhar a consciência e salvar-se…

Já perdeste a noção das horas em que procuraste salvar-te enquanto escreves. Os dedos escorrem-te pelo teclado. Lá fora chove desalmadamente; é a forma que a Natureza encontrou para se purificar; quanto a ti, este é o único verbo que aprendeste a conjugar para, ainda, te conseguires lavar.

O local onde te encontras já serviu de abrigo a outros Homens, que partiram muito antes de chegares. À tua volta, as paredes estão prenhes de pinturas e mesmo em frente ao teu nariz jaz um enorme bisonte, eternizado naquele instante em que a lança o atravessa. Sentado, com o computador nas pernas, ligas a lanterna e vais inspeccionando detalhadamente cada pormenor da gruta, quiçá na esperança de reconstruir os esqueletos que trazes perdidos na memória.

Quando o discípulo de Hipócrates te disse que apenas te restavam mais alguns meses de vida e ouviste aquela palavra, que ainda agora não consegues sequer pronunciar, fugiste o mais depressa possível. Correste, correste até chegar aqui, a esta húmida caverna.

Agora, embrenhado na mais profunda solidão, remiras cada uma das pinturas rupestres e vêm-te à memória as centenas de livros que foste devorando sobre a arte da pré-história. Sim, tu sabes que numa gruta esparsamente iluminada seria quase impensável esgrimir uma função meramente estética para estes desenhos. Sim, os compêndios alertam-te para o significado mágico destes traços, factor indissociável da omnipresente luta pela sobrevivência. Mas tu procuras o Homem concreto para além destes magníficos desenhos, queres conhecê-lo de um modo tão intenso que, de tanto imaginá-lo, quase podes jurar pressenti-lo ali mesmo a escassos metros da tua presença.

Sentes que está frio, está muito frio e este lugar parece ter feito um pacto com a escuridão. Agora mesmo, desejas estender a mão direita e tocar na pele desse antepassado que há vinte mil anos aqui esteve, a colorir com o próprio sangue as pedras que também lhe serviam de abrigo. Tu sabes que chegaste aqui irremediavelmente atrasado, mas as imagens que carregas dentro de ti são de tal modo vivas que, por breves instantes, chegas mesmo a perder-te nesse lapso que medeia o passado e o presente. Entretanto, nesse entretanto que é a vida, talvez tenhas deixado de existir ou talvez possas até ter-te transformado num outro eu – a minha única certeza é que deixaste de estar só.

Deixei de conseguir reconhecer-te, mas, por entre a penumbra, consigo ver que tens agora a teu lado a rena que demoraste uma semana a caçar. Pareces acenar-me. Sim, estás agora a acenar-me. Queres dizer-me como esta caçada foi dura. Primeiro, ouviste os bramidos da besta ainda à distância de um lançamento com recurso ao magnífico propulsor, depois, construíste uma imagem da sua forma e esculpiste-a a ocre vermelho e com o teu próprio sangue. Apontas a parede mesmo à minha frente e eu sorrio. Continuas, então, a reconstituição, dizendo-me que ludibriaste o vento com a ajuda do deus-sol, atraíste o animal e desferiste-lhe o golpe fatal, no exacto momento em que recomeçou a nevar. Agora, sem que nada o fizesse prever, interrompeste o relato. Apontas desamparadamente para cima, mas o teu olhar parece ultrapassar a última pedra que te impede de tocar o firmamento. A gritar, a gesticular por todos os lados e em direcção a todos os lados, anuncias-me que o deus-sol te exigiu um sacrifício e, por isso, tiveste de regressar sozinho à gruta. Com toda a violência que consegues, atiras uma bolota contra a parede, para logo a seguir murmurares que arrastaste a presa e a depositaste na cavidade onde ainda agora se encontra. Depois, continuas, voltaste a desafiar o gelo exterior. Não sabes ao certo por que o fizeste, mas algo dentro de ti parecia anunciar-te que era assim que deverias actuar. Quando chegaste ao local da caçada, embalaste o cadáver de teu irmão no peito e avançaste até aqui, onde agora permaneces. Ele era o sacrifício que o deus-sol te exigiu.

Tens as mãos inundadas de sangue. Do alto do meu pedestal, fiquei a observar-te enquanto sustinhas a lança para vasculhar as entranhas da carcaça do animal. Agora mesmo, vejo-te chafurdar a mão direita do teu irmão no interior da rena. O cheiro a sangue fresco inunda toda a lúgubre caverna. Mas tu não pareces incomodado com nada disso. Estás apenas preocupado em gravar lado a lado, na ala nascente do abrigo, as mãos direitas dos únicos irmãos que algum dia ali tinham vivido: tu e ele. Só depois poderás partir.

Partirás até que exista um depois. Ritualmente, sempre que a lua se enche e os sentidos, já saciados, se apaziguam, regressas àquela gruta parada no tempo. Quando o fazes, sentes a tua existência prolongada naquela imagem; passou a ser a tua porta para as emoções. Diariamente, transporta-la contigo, ajuda-te a acreditar que não estás só, que lá longe a mão do teu único irmão continua presente, sempre pronta a agarrar-te, mesmo que não o tivesses ajudado quando ele mais necessitou. Aquela imagem é estranha: tu deste-lhe vida, mas ao mesmo tempo ela alimenta-te, adquiriu uma vida própria. Com ela, aprendeste lentamente a imaginar o que está para além do que podes apenas tocar e inventaste o futuro.

Ao longo do tempo (ah! filogenia…) aprendeste a saber que sabes o que sentes, subiste a pulso o poço da existência: desde o proto-eu, passando pelo eu nuclear até ao eu autobiográfico, como muito mais tarde António Damásio haveria de chamar ao patamar mais sublime da consciência humana.

Aqui, nesta gruta gélida e escura, há milhares de anos atrás, tu eras eu, eras nós… a casa da consciência, como Damásio lhe chama, começou a ser, verdadeiramente, aperfeiçoada naquele dia, naquela hora, por um nosso antepassado que se procurava para além do que tocava e desenhava…

A arte construiu-nos, salvou-nos e poderá sempre voltar a erguer-nos, sobretudo nos momentos em que mais necessitarmos. Possam estes traços auxiliar-vos, tal como ainda agora me ajudaram, nestes instantes da vida em que andamos perdidos dentro de nós próprios, à procura de um sentido para o que enfrentamos, o que somos ou para onde vamos.
Renato Nunes - Dezembro de 2010

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